Na minha escola, quando chovia, a água desenhava sulcos superficiais no caminho de areia, pelos quais corria. O divertimento, nos intervalos, era construir pequenas barragens de areia que impedissem a água de prosseguir. A luta era inglória, claro, mas por uns breves instantes ilusórios, éramos os senhores da água, pequenos domadores da natureza. O suficiente para compensar as meias molhadas na aula seguinte.
Na altura, via a minha vida como uma série de barragens de areia, que eu procurava manter. Pressentia já que a chuva acabaria por vencer... Nunca poderia manter todas aquelas barragens invioladas, principalmente quando via aumentar o volume de água.
A percepção da inevitabilidade, embora me assustasse, não mudava nada. Apenas procurava ganhar tempo. Sabia que mais cedo ou mais tarde, a água romperia uma barragem. E esse seria o ponto de viragem, com o qual não saberia lidar. Sempre tinha sido perfeito, nada podia falhar. Então corria a reforçar esta e outra barragens, num omnipresente receio de ver tudo desmoronar.
Eram as notas, a família, a religião, a sexualidade, tantas coisas. Sofre-se quando se quer controlar tudo, como se isso fosse possível. Ainda dei o meu melhor, mas um dia a água ganhou. É inútil lutar contra o que tem de ser. Nessa altura, desisti de mim, só para muito mais tarde me recuperar. Gradualmente mudei por fora, enquanto por dentro ardi, para das cinzas me ir refazendo. Não seria possível de outro modo.
Agora que tenho barragens de betão e controlo os fluxos com as comportas, em vez de tentar impedir o natural curso da água, é raro haver inundações ou secas. Mesmo assim, às vezes volto ao mesmo. Hoje reencontrei uma pessoa que me magoou muito no passado. Por largos minutos, desorientei-me, e ao tentar lidar com essa barragem, negligenciei as outras. Mas já está tudo resolvido. Agora, é só limpar a lama que ficou.
Na altura, via a minha vida como uma série de barragens de areia, que eu procurava manter. Pressentia já que a chuva acabaria por vencer... Nunca poderia manter todas aquelas barragens invioladas, principalmente quando via aumentar o volume de água.
A percepção da inevitabilidade, embora me assustasse, não mudava nada. Apenas procurava ganhar tempo. Sabia que mais cedo ou mais tarde, a água romperia uma barragem. E esse seria o ponto de viragem, com o qual não saberia lidar. Sempre tinha sido perfeito, nada podia falhar. Então corria a reforçar esta e outra barragens, num omnipresente receio de ver tudo desmoronar.
Eram as notas, a família, a religião, a sexualidade, tantas coisas. Sofre-se quando se quer controlar tudo, como se isso fosse possível. Ainda dei o meu melhor, mas um dia a água ganhou. É inútil lutar contra o que tem de ser. Nessa altura, desisti de mim, só para muito mais tarde me recuperar. Gradualmente mudei por fora, enquanto por dentro ardi, para das cinzas me ir refazendo. Não seria possível de outro modo.
Agora que tenho barragens de betão e controlo os fluxos com as comportas, em vez de tentar impedir o natural curso da água, é raro haver inundações ou secas. Mesmo assim, às vezes volto ao mesmo. Hoje reencontrei uma pessoa que me magoou muito no passado. Por largos minutos, desorientei-me, e ao tentar lidar com essa barragem, negligenciei as outras. Mas já está tudo resolvido. Agora, é só limpar a lama que ficou.
6 comentários:
Sempre acreditei que por maior que fosse o esforço para nos manipularmos a nós mesmos a nossa verdadeira identidade nunca pereceria, apenas ficaria adormecida e (muitas vezes) resignada aquilo que lhe impúnhamos na ânsia de ou sermos diferentes ou de simplesmente não nos magoarmos. Essa verdadeira face, demasiado prezada, deveria só ser revelada a quem lhe soubesse dar valor.
É por isso que quando noto que alguém confia em mim ao ponto de me revelar a sua verdadeira face me sinto num misto de terror (por medo de desiludir a pessoa) e agradecimento (pela confiança depositada).
É por isso que me torno mais forte e tento perceber e respeitar a pessoa agora liberta de máscaras.
Isto tudo para dizer que por mais que tentes controlar as barragens o curso da água acabará por encontrar o seu caminho (porque ele não se esqueceu do seu propósito nem da sua direcção, apenas se conforma com o destino que lhe foi dado). Se por motivo de uma deixas as outras voltarem ao seu desenho inicial resta-te aceitar isso e quem sabe pedir ajuda para limpar a lama que pode ter caído em cima de alguém...
(desculpa o longo comentário, mas deu-me para isto...deve ser da hora :P)
Mas é esse "romper" das "barragens" construídas que nos criam alguns "conflitos interiores", permitindo o nosso crescimento e enriquecimento como pessoas!
Tens cada vez mais "acessos de criaçäo literária"! E ainda por cima dizes coisas importantes com graça! Talentoso, este rapaz! Abraço e bom fim de semana.
Eu cá fui o filho perfeito, o neto perfeito, o sobrinho perfeito, o aluno perfeito - era assim uma espécie de santo, apontado como exemplo a todo o mundo, que era incitado à veneração.
O saber que gostava de rapazes tanto quanto de raparigas era aceite, internamente, sem problemas. Mas por nada deste mundo queria desgostar gente tão excelente, que gostava tanto de mim e a quem eu devia tanto. Uma experiência homo precoce, no Verão dos meus 16 anos, foi posta no sótão. E tentei comportar-me "bem" para não os desgostar.
Aos 20, rebentou, a "barragem". E decidi que teria sexo com e, se tivesse sorte, amaria homens e/ou mulheres. Foi o meu coming out 1), "interno", quero dizer: saí do armário mas fiquei no quarto.
( Dos outros coming-outs - 2) mãe; 3) filhos e outra família próxima; 4) amigos; 5) para quem queira saber - que ocorreram em alturas separadas por 20 anos, falarei mais tarde. )
Compreendo muito bem a metáfora da barragem. E o aliviar de tensão que se segue.
Abraço,
ZR.
( Pouco tempo. )
Aiás, eu era de tal maneira perfeito e exemplar, sans tache et sans reproche, que, não fosse "aquela grave desordem moral" ( para usar as palavras de alguém que conheces melhor que eu ), ter-me-ia tornado, certamente, um muito grande sacana.
Talvez a "GDM" fosse o caminho que Ele, num ataque de riso, seguiu para me humanizar. Nunca te esqueças que nós criámo-Lo à nossa imagem e semelhança e que o nosso humor é ácido, como os frutos do deserto de onde vimos.
'braço,
Zé Ribeiro.
Zé Ribeiro, disse: "Talvez a "GDM" fosse o caminho que Ele, num ataque de riso, seguiu para me humanizar."
Também já pensei nisso. :)
À conta disso (e não só) ganhei muito em tolerância.
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