11.2.06

Crónicas do passado



Devia ter desconfiado de uma galeria que tem um quadro destes. Nada disso, porém, me passava pela cabeça quando tentei ler em voz baixa o nome do artista alemão que tinha pintado o quadro à minha frente. Atrás de mim, risinhos, seguidos da pronunciação correcta. Sem que eu pedisse, o alemão trintão e o seu amigo adolescente contaram-me a história toda do pintor. Eu nisso até sou sociável, gosto de meter conversa e que metam conversa comigo, mas senti que algo estava mal. Tentei desencorajar a conversa de um modo subtil, mas o amigo que estava comigo tem o defeito terrível de não desperdiçar nunca uma oportunidade de aprender mais, seja o que for.

A cadência rápida dos minutos acabou por me proporcionar a melhor desculpa: "a conversa está muito agradável, mas temos de ver o museu". Logo contrapôs o alemão que nos encontrássemos à saída para lanchar, que ele pagava. Todos os sinais de alarme soaram ao mesmo tempo no meu cérebro, e antes que tivesse tempo de organizar os pensamentos numa desculpa razoável, já o meu amigo tinha concordado. Alma ingénua! Ainda mais que eu, o que é difícil.

A Villa Borghese é um regalo para os olhos. Que desperdício aqueles minutos a discutir a vida de pintores alemães. Saltámos de sala em sala, a absorver a beleza pelos nossos olhos ignorantes. Para mim, a arte é pouco mais que isso: ou me evoca sentimentos positivos, ou não gosto. Dei a entender ao meu amigo que aquele lanche me cheirava a esturro. Mas nem eu tinha certezas nem queria dar a entender um "sexto sentido" que começava ainda a despontar em mim.



E pronto, lá tivemos que o deixar pagar-nos o lanche, umas sandes no parque. Tirei a carteira, barafustei, tentar chegar a nota ao vendedor com mais rapidez, mas perdi. Ele sabia-a toda, e eu era demasiado novo para o contrariar. Entretanto, o meu amigo dava-lhe corda. E eu a pensar furiosamente numa forma de fuga civilizada. Levantar-me e sair dali não era então uma opção para mim, seria rude. Nesses preparos, o alemão começa a tirar fotografias de tudo e de mim. É que nem disfarçou, nem uma tirou do meu amigo. Eu protestava envergonhadamente. Sim, sei que é de homem responder à altura, mas eu nisso pouco mais era que uma criança.

Eu já estava exasperado com o meu amigo, que não percebia nada. Pronto, eu ainda não tinha mais que suspeitas (naïve...), mas ele estava realmente a apreciar a conversa a nível intelectual. Disse-lhe palavra por palavra o que pensava, mas não o consegui convencer. Anuíu novamente quando o alemão nos propôs mostrar a "melhor gelataria" de Roma, apesar dos meus protestos "temos pressa, vamos perder o combóio, os nossos amigos estão à espera". No caminho, tive de suportar uns olhos-nos-olhos do alemão. Ainda se fosse do "amigo" dele, mais para a minha idade e atrativo... Mas não, estava mesmo a ser aliciado por um sugar daddy...

Comprou-nos gelados e passou o dedo mindinho pelo meu enquanto mo dava. Se eu já estava mortificado, aí foi o limite. Inventei mil e uma desculpas e fiz o meu amigo jurar que tínhamos de apanhar o combóio seguinte dali para fora. E ele ainda queria as nossas moradas. Demos os e-mails, cantámos o hino nacional (essa não me lembro porquê...) e fugimos.

O curioso, é que mesmo depois disso tudo, o meu amigo não tinha ainda mais que ligeiras suspeitas. Eu deixei cair. Não me cabe a mim tirar a inocência aos outros. E apesar de tudo, recomendo a Villa Borghese. Não vão é com um amigo ingénuo!

13 comentários:

Manuel disse...

O facto de cantar o Hino Nacional quando se é objecto de assédio tem algum propósito ou utilidade??? :)

E já agora: trintöes näo säo velhos!!! Ai, ai, ai...

Anónimo disse...

Ora, ora: um pouco mais de descontração e talvez tivesse havido desenvolvimenmtos interessantes, mesmo com o adolescente.

Da leitura retiro a ideia de susto. Porquê?

E porquê SÓ gostar do assédio feminino? Se se é hetero, claro. Mas não sendo o caso ... Ficarás atrapalhado? Ficarás atrapalhado por alguém poder ver? Ficarias atrapalhado numa praia deserta com o adolescente? Ou é a ideia de assédio? Mas porquê, então gostar do feminino?

E uma tentativa de sedução não é necessariamente assédio. Só o é quando há insistência para além de manifestação de desagrado.

Não percebo.

Zé Ribeiro.
jribeiro@uevora.pt

/me disse...

Manuel, é muito útil quando se é desafinado quanto eu! Mas penso que o hino foi cantado a pedido. E claro que trintões não são velhos, mas eu era puto e pouco desenvolto em alguns aspectos...

/me disse...

Zé, o homem assustou-me mesmo. Quando tirou fotos, por exemplo, eu disse que não queria que tirasse mais do que uma vez, e não parou. Aí a sedução passa a assédio, mesmo, embora compreenda que este possa ser um conceito subjectivo. Por outro lado, não sei se compreendeste uma coisa: o adolescente era o "namorado" do alemão. Coloco entre aspas porque penso que era uma relação utilitária: um tinha dinheiro, outro juventude.

Não é por alguém me ser desagradável que considero a sedução assédio. Mas de facto houve um ultrapassar de limites, um mostrar reiterado de desagrado da minha parte, temperada com a tremenda ingenuidade e curiosidade para com estrangeiros do meu amigo, que não me permitiu cortar conversa. Fraqueza minha, admito. Hoje não seria assim. :)

Quando a gostar só do assédio feminino, foi uma frase infeliz da minha parte. Digamos que desgosto menos do feminino, porque me sinto menos inseguro. E também porque fico menos atrapalhado, tens razão. Vou mudar a frase do meu texto onde digo isso, vê se está melhor, por favor. :) Obrigado.

Finalmente, se estivesse numa praia deserta com um qualquer outro rapaz giro, seria mais fácil haver interacção (conversa) do que se a praia estivesse cheia. Mas provavelmente a iniciativa teria de partir dele. :P

Anónimo disse...

Bom, desse ponto de vista, não há já nada a dizer: retiraste a referência.

Continuo a achar muito curiosas certas coisas:
i) Que te sintas menos inseguro e atrapalhado assediado por uma mulher que por um homem.
ii) Que, no caso da praia, a iniciativa provavelmente devesse partir dele.
iii) Que, ainda no caso da praia, te tivesses sentido na necessidade de pôr o parêntesis em "interação ( conversa )".

É muito curioso. Digamos que não é usual.

Por exemplo, eu, que sou bi, sinto-me mais ... atrapalhado e inseguro não ... mas mais desafiado para algo que é difícil, quando é com mulheres. E não creio que eu seja um gay que faz uma perninha com mulheres; não, creio ser genuinamente bi. A questão é que com homens as coisas fluem mais naturalmente, entre iguais, sem serem contaminadas por toda essa treta de dominação, que, queiramos ou não, está presente nas relações homem/mulher.

Quanto ao ponto ii) das minhas observações, talvez haja uma explicação na timidez que tenhas.

Resta o ponto iii). Porquê o parêntesis?

Nota bem: eu não sou nenhum fauno e sou estrictamente monoândrico/monogâmico: que quem tem um(a) não queira ter dois(uas).

E há coisas na vida mais importantes que sexo. E, se sexo é bom, sexo com amor é magnífico. E só um tapadinho é que não percebe que uma tarde nos braços da pessoa amada, bebericando chá e falando da vida, enquanto lá fora o vento sopra e a chuva cai, é uma experiência tão gratificante quanto a queca mais bem conseguida.

Mas há ocasiões na vida de um homem em que o sexo, o sexo só, sem envolvimento emocional, também tem lugar ( sobretudo quando se é novo ). Não há nada de errado nisso. Pode até ser um começo para algo mais profundo.

Ora tu não tens companheiro ... logo a fidelidade não está em jogo. A praia está deserta ... logo as condições são ideiais. Porquê só conversa? Acharás, dentro de ti, que sexo sem amor está errado? Se é o caso, tudo bem: é uma posição que não é a minha, mas que compreendo, respeito e acho preferível à oposta. ( A minha, como compreendeste, é intermédia. )

Desculpa-me a insistência, mas gosto de compreender as coisas. Se achas que sou excessivamente abelhudo/inquisitivo/..., dize-o, por favor.

Com amizade,
Zé Ribeiro,
jribeiro@uevora.pt

Paulo Afonso disse...

Aqui está uma história... daquelas que podia acontecer a qualquer um! Um relato da ingenuidade e da "astúcia". Em suma: gostei, bem escrito e divertido!

/me disse...

i) Não sei explicar. Talvez haja alguns assuntos mal resolvidos em mim.
ii) Sem dúvida, é timidez!
iii) Eu acho que o sexo é o corolário lógico de uma relação sólida. Para mim, só faz sentido nessas condições. Em mim, a atracção física é muito condicionada pelos sentimentos que a pessoa me desperta.

Respondi bem? :)

dcg disse...

Tenho a certeza que teria reagido exactamente do mesmo modo.
Este episódio que relatas faz-me lembrar um que me aconteceu num quarto de banho de um centro comercial de onde desatei a correr assim que me apercebi de uma possível abordagem.

Anónimo disse...

Medo....muito medo..... :S:S:S:S

Anónimo disse...

Caro /me:

( Este vocativo é horrível: parece que estou a conversar com um ficheiro informático. Não podias arranjar algo menos desumanizado? )

Claro que respondeste bem, claro.
Nestas coisas, cada um sabe de si.

Mas, se "a atração física é muito condicionada pelos sentimentos que a pessoa te desperta", não há grande necessidade que o rapaz seja "giro", como tu puseste no comentário.

Um camafeu que, pelas suas elevadas qualidades morais, te desperte os mais ternos sentimentos poderia ser objecto do teu desejo físico? ( No meu caso, pode. Mas eu sou antifascista - incluindo o fascismo do corpo, tão espalhado nos meios gay ).

( O que não quer dizer que não me preocupe com o meu corpo; não tenho um suplente. Mas, para abrir os lençóis da minha cama ou a intimidade da minha vida a uma pessoa, o corpo dela não é o ponto mais importante. )

( A provável diferença em relação a ti é que aceito - às vezes, às vezes - abrir os lençóis sem primeiro ter aberto a intimidade. Nota que abrir a intimidade é um passo muito mais grave e sério que abrir os lençóis. )

( Em tempos, também pensei como tu; depois, concluí que era o abafador judeo-cristão com que vinha da loja e reformatei-me. Mas - insisto - I'm not a slut. Só um bocadinho mais loose. )

Zé Ribeiro.

/me disse...

Zé Ribeiro,

Concordo que "/me" foi uma má escolha, mas na altura não tive imaginação para mais. Estou a pensar trocar o "nick" por "minudencias", ou "minudências", se possível. O problema é que para muitos já sou o "/me". Tenho de fazer uma operação de mudança de identificativo. :)

Quanto à necessidade do rapaz, ou rapariga, para o caso, ser giro, não é absoluta, mas dá um jeito. Já gostei de pessoas que mais tarde vim a achar feias, mas cuja personalidade me encantava. :)

Quanto ao "camafeu" (palavra curiosa!), depende muito da interacção que tivéssemos. Mas não seria inédito. :)

De resto, não tens de te justificar. Há apenas uma coisa que eu acho grave: enganar e usar outras pessoas. De resto, tenho os meus valores, mas respeito outros. :)

/me disse...

Pensando melhor, não, não quero mudar o nick. Até cheguei a pensar usar durante uns tempos o nick "/me...nudencias" e depois mudar para "minudencias", para fazer uma transição pacífica. Mas afinal não.

Quanto tive de escolher o nick, queria algo que não me prendesse a uma qualquer palavra, aos significados que esta possa ter. Talvez "minudências" fosse uma escolha mais natural, mas na realidade, há algum nick que faça mais jus ao nome do blog que "/me"? Podia realmente ser mais simples e objectivo, mais comum? Todos somos para nós um "eu", todos poderíamos assinar assim. Não obstante, tem a minudência do "/", um pormenor diferenciador.

E pronto, si non è vero, è benne trovato. Não? :)

Anónimo disse...

Aqui me penitencio...

Incrível q ainda te lembres do quadro! Já tinha relembrado a situação mas o quadro aparecia na memória sempre "branco"...