6.2.06

Alta velocidade

Por isso é que temos de ir morrendo, diz a minha mãe, perturbada por mais uma modernice. Ir morrendo, no português dos Fados e de Amália, significa deixar um pedaço de nós em cada momento do passado, como se fosse o tempo um corredor demasiado estreito de paredes ásperas. Não é o sentido usado pela minha mãe, que sendo uma mulher profunda é também bem mais prática: ainda bem que a nossa vida tem limite porque somos produto do tempo em que fomos criados, e há limites para a nossa capacidade de adaptação. Os tempos correm mais que as pessoas. É duro, acho eu, ir acompanhando tudo o que muda. Às vezes dá vertigens, a rapidez de tudo. Era bom poder baixar a guarda sem tudo mudar. Mas não é o mundo em que vivemos. As vagas de mudança vêm primeiro gradualmente, depois bem de repente, apanhando de surpresa mesmo os que há muito anunciavam a sua chegada.

6 comentários:

Nobody's Bitcho disse...

Por isso é que sou apologista de uma evolução que avança de forma gradual... quando é algo que cai de "chapada", o resultado nem sempre é bom...

dcg disse...

Parabéns pelo post!
Extremamente bem conseguido. Conciso, tocante e muito verdadeiro! Fez-me pensar!

/me disse...

Caro Zé,

O ser velho é relativo. Tal como provaram recentemente o Papa e, no plano interno e independentemente de áreas políticas, o Mário Soares.
Aliás, não acho que os tempos corram mais do que as pessoas por culpa de uma perda de capacidades, mas porque tudo muda, e enquanto uma criança tem o direito de ser ignorante em muitas áreas, um adulto tem de saber muitas coisas ao mesmo tempo, e todas elas mudam. É normal que se desista de acompanhar a evolução de algumas.

Quanto às mentalidades, acho 300 anos francamente pessimista. ;)

Orlando disse...

Pergunto-me, se não tivesses nascido gay, apoiavas a luta dos homossexuais? Provavelmente não!

Noutros combates pela tolerancia, estás do outro lado da barricada. Que as mulheres pobres não tenham a possibilidade de fazer um aborto em condições, isso não te interessa. Porque é isso que está em causa, mais nada.
Mas tu preferes "dar murros em ponta de faca" a discutir com o Timshell. Uma pura perda de tempo.

Porque é que eu hei-de ser solidário contigo num combate que não me diz respeito?

/me disse...

(nota: para perceber o comentário do on, ver http://daprosa.blogspot.com/2006/02/outros-contextos_06.html)

On, provavelmente não, tens razão. Às vezes são as nossas circunstâncias que nos levam a confrontarmo-nos profundamente com as questões. Eu era bastante preconceituoso, quanto à homossexualidade. Vivi em coerência com isso durante anos (sou bissexual, o que porventura facilita), mas acabei por aprofundar mais o assunto. Antes era muito intolerante, quanto à homossexualidade. Se calhar, noutras questões, noutras circunstâncias, teria outras opiniões. Estou consciente disso, e o que tenho a dizer em minha defesa é que faço o meu melhor para ser justo e caridoso.

Eu não acho que aborto-homossexualidade-eutanásia e outras questões fracturantes sejam questões que venham todas no mesmo pacote. Eu concordo que se deve ter toda a liberdade do mundo, mas apenas enquanto essa não interferir com os direitos dos outros. Quando há vários direitos em conflito, é preciso avaliar qual é o mais importante.

Quanto ao aborto, deixa-me perguntar-te uma coisa. Estás de acordo que uma mulher rica e bem casada, numa família estável, possa abortar? É para ti somente uma questão de liberdade? Se disseres sim, pergunto-te até quando, até quantas semanas? Se disseres não, digo-te que quando queres dar às mulheres pobres o direito a abortar, não queres é dar-lhes o direito a ter todas as condições para ter o filho.

De qualquer dos casos, esta é uma questão que para mim não é trivial. Enquanto na questão do casamento homossexual não vejo nenhum conflito de direitos, neste vejo claramente um: o direito dos pais vs o direito do não-nascido.

Se eu achasse que a liberalização do aborto era um direito das mulheres, sem colocar em questão outros direitos, faria disso um combate prioritário meu.

Agora, porque hás-de ser solidário comigo? Isso tens tu de responder... Não te prometo qualquer contrapartida, não lutarei nenhum combate contigo se não concordar com ele. Apenas te garanto que caso eu ache que estás a ser injustiçado, aí sim, solidarizo-me. Só que o critério dessa injustiça fica para a minha consciência... Eu teria de ser muito interesseiro para alinhar em combates com os quais não concordo para alinharem nos meus.

Ah, e quanto às barricadas, enganas-te. Como tu, estou do lado das vítimas. Temos é perspectivas diferentes.

Manuel disse...

Posso meter o nariz?
Parece-me que essa discussäo sobre quem participa em cada "combate" e porquê é um bocado chover no molhado...
A história mostra, até à exaustäo, um dado que me parece lógico e compreensível: Quem tem de dar o corpo ao manifesto em cada combate säo as pessoas que se vêem directamente afectadas. Foi assim com os direitos das mulheres, foi assim com os direitos dos negros, foi assim com os povos que se levantaram em revoluçöes mais tranquilas ou mais violentas, contra regimes opressores.
Isto quer dizer que os outros se devem demitir? Näo. Pelo contrário: as coisas mudam à medida que os directamente afectados tenham capacidade de convencer os outros da justeza da sua luta.
E quando os que "näo têm nada a ver com a questäo" percebem as razöes do combate e se pöem ao lado dos lutadores, está meio caminho andado para a vitória da justiça.