Nunca fui de hastear bandeiras na varanda. Pela primeira vez tive vontade de hastear uma bandeira num sítio qualquer. Mesmo que não fosse na varanda. Essa bandeira da portugalidade que eu julguei sempre não existir de tão pequeno o país. Ao ouvir a vigésima de Mozart pelas mãos (tão) pequenas da Maria João Pires senti um tremendo orgulho de alguém que partilha comigo a nacionalidade. Como no poema do Cummings, nem mesmo a chuva tem mãos tão pequenas. E que beleza maior me ofereceram a mim e a tantos que a aplaudiram quase aos gritos.
Só hoje li as notícias deste crime hediondo aqui ao lado, no meu país. De repente baixo a bandeira desse qualquer sítio onde a havia hasteado. Queremos sempre imitar o que há de pior em qualquer país. Fugimos aos limites do nosso próprio medo.
Vou pôr essa mesma bandeira a meia haste. Vou trocar a vigésima por um Requiem. Pensei que já tínhamos crescido um bocadinho. Enganei-me, continuamos tão pequenos. Estou neste momento num país onde os homossexuais podem casar e onde os travestis passam pela rua e ninguém repara. Sou de um país onde a diferença assusta. Sou de um país onde se mata a diferença, literalmente. Há países onde, mais do que não reparar, essa diferença já não existe.
\me, espero que estejas melhor. ZR, recebi o teu mail, vou responder-te, agora fiquei com um nó português na garganta.
O teu link remete para o Renas e Veados e o caso do trans brasileiro morto na semana passada por um grupo de adolescentes.
A motivação do ódio homofóbico ( transfobia, bifobia, ... todas essas coisas se reduzem em última análise à homofobia; quando nos apresentam a conta, é a componente homo que é facturada ) é evidente: os assassinos faziam há muito saídas nocturnas em que se entretinham a insultar e bater em prostitutos, trans ou não; e o desgraçado foi espancado, apedrejado e violado aos gritos de "paneleiro".
Mas a comunicação social ( excepção ao JN ) e o pessoal político ( excepção ao BE e ao Francisco Assis do PS ) referem a vítima como "sem-abrigo" ou "toxicodependente" - o que ele era, mas não foi a razão directa do ódio.
As declarações do padre director da instituição em que vivem os assassinos são um nojo: classifica o crime como uma "asneira" que os rapazes fizeram e diz que lá terão as suas razões por terem sido molestados por pedófilos.
Há uma campanha de desculpabilização dos pobres rapazes, dirigida por sectores da Igreja, e com que é conivente boa parte da comunicação social. A maioria dos políticos assobia para o lado. Mesmo no movimento LGBT, o facto de a vítima se transsexual e toxicodependente e prostituto - bicho exótico, que incomoda a nossa respeitabilidade - amortece a expressão da solidariedade devida.
Por respeito para com a vida da Gi ( a morte dela não tem que entrar aqui ), todos os usos do género gramatical masculino no comentário anterior devem ser alterados para o feminino. E peço perdão pelo erro.
Transcrevo o artigo de Manuel António Pina no JN de hoje:
Sentirmo-nos todos transexuais:
"Estas coisas não acontecem por acaso", disse outro dia na TVI o padre Lino Maia, presidente das IPSS, referindo-se ao assassínio da transexual Gis por um grupo de adolescentes das Oficinas de S. José. E falou de rumores de que alguns jovens da instituição teriam sido assediados por um "pedófilo". pelo que (cito de cor) "não se sabe que razões teriam os homicidas". E isso poderia ser uma "atenuante"...
O padre Lino Maia é uma pessoa culta, e tenho-o (e isso não é pouca coisa) como homem bom e justo. Mas "razões", padre Maia? Que "razões" pode haver para um crime tão absurdo, tão para além da própria razão? Quero compreender a preocupação paternal do padre Maia com os seus "miúdos", que o terá levado a tentar explicar o inexplicável. Quero, mas não consigo. Tais afirmações, vindas de um educador, são desoladoras e capazes, elas sim, se essa for a práctica educativa seguida nas oficinas de S. José, de ajudar a explicar o crime dos rapazes, que, sabe-se agora, tinham por hábito perseguir "homossexuais" e "travestis". Não, padre Maia, a única posição moral admissível perante tal crime é, como perante a tragédia de Auschwitz todos devemos sentir-nos judeus, sentirmo-nos agora todos (a caridade, padre Maia, a caridade) transexuais.
Asilos, abusos sexuais, trans-sexuais, prostitutos, pedófilos, lenocídio. São palavras que teimam em andar juntas. Esperemos se o 2º capítulo do Casa-Pia não seja "As Oficinas de ...". "Os Miseráveis" deveriam ter uma segunda edição melhorada!
5 comentários:
Nunca fui de hastear bandeiras na varanda. Pela primeira vez tive vontade de hastear uma bandeira num sítio qualquer. Mesmo que não fosse na varanda. Essa bandeira da portugalidade que eu julguei sempre não existir de tão pequeno o país. Ao ouvir a vigésima de Mozart pelas mãos (tão) pequenas da Maria João Pires senti um tremendo orgulho de alguém que partilha comigo a nacionalidade. Como no poema do Cummings, nem mesmo a chuva tem mãos tão pequenas. E que beleza maior me ofereceram a mim e a tantos que a aplaudiram quase aos gritos.
Só hoje li as notícias deste crime hediondo aqui ao lado, no meu país. De repente baixo a bandeira desse qualquer sítio onde a havia hasteado. Queremos sempre imitar o que há de pior em qualquer país. Fugimos aos limites do nosso próprio medo.
Vou pôr essa mesma bandeira a meia haste. Vou trocar a vigésima por um Requiem. Pensei que já tínhamos crescido um bocadinho. Enganei-me, continuamos tão pequenos. Estou neste momento num país onde os homossexuais podem casar e onde os travestis passam pela rua e ninguém repara. Sou de um país onde a diferença assusta. Sou de um país onde se mata a diferença, literalmente. Há países onde, mais do que não reparar, essa diferença já não existe.
\me, espero que estejas melhor.
ZR, recebi o teu mail, vou responder-te, agora fiquei com um nó português na garganta.
AR
O teu link remete para o Renas e Veados e o caso do trans brasileiro morto na semana passada por um grupo de adolescentes.
A motivação do ódio homofóbico ( transfobia, bifobia, ... todas essas coisas se reduzem em última análise à homofobia; quando nos apresentam a conta, é a componente homo que é facturada ) é evidente: os assassinos faziam há muito saídas nocturnas em que se entretinham a insultar e bater em prostitutos, trans ou não; e o desgraçado foi espancado, apedrejado e violado aos gritos de "paneleiro".
Mas a comunicação social ( excepção ao JN ) e o pessoal político ( excepção ao BE e ao Francisco Assis do PS ) referem a vítima como "sem-abrigo" ou "toxicodependente" - o que ele era, mas não foi a razão directa do ódio.
As declarações do padre director da instituição em que vivem os assassinos são um nojo: classifica o crime como uma "asneira" que os rapazes fizeram e diz que lá terão as suas razões por terem sido molestados por pedófilos.
Há uma campanha de desculpabilização dos pobres rapazes, dirigida por sectores da Igreja, e com que é conivente boa parte da comunicação social. A maioria dos políticos assobia para o lado. Mesmo no movimento LGBT, o facto de a vítima se transsexual e toxicodependente e prostituto - bicho exótico, que incomoda a nossa respeitabilidade - amortece a expressão da solidariedade devida.
Zé Ribeiro.
Por respeito para com a vida da Gi ( a morte dela não tem que entrar aqui ), todos os usos do género gramatical masculino no comentário anterior devem ser alterados para o feminino. E peço perdão pelo erro.
Zé Ribeiro.
Transcrevo o artigo de Manuel António Pina no JN de hoje:
Sentirmo-nos todos transexuais:
"Estas coisas não acontecem por acaso", disse outro dia na TVI o padre Lino Maia, presidente das IPSS, referindo-se ao assassínio da transexual Gis por um grupo de adolescentes das Oficinas de S. José. E falou de rumores de que alguns jovens da instituição teriam sido assediados por um "pedófilo". pelo que (cito de cor) "não se sabe que razões teriam os homicidas". E isso poderia ser uma "atenuante"...
O padre Lino Maia é uma pessoa culta, e tenho-o (e isso não é pouca coisa) como homem bom e justo. Mas "razões", padre Maia? Que "razões" pode haver para um crime tão absurdo, tão para além da própria razão? Quero compreender a preocupação paternal do padre Maia com os seus "miúdos", que o terá levado a tentar explicar o inexplicável. Quero, mas não consigo. Tais afirmações, vindas de um educador, são desoladoras e capazes, elas sim, se essa for a práctica educativa seguida nas oficinas de S. José, de ajudar a explicar o crime dos rapazes, que, sabe-se agora, tinham por hábito perseguir "homossexuais" e "travestis". Não, padre Maia, a única posição moral admissível perante tal crime é, como perante a tragédia de Auschwitz todos devemos sentir-nos judeus, sentirmo-nos agora todos (a caridade, padre Maia, a caridade) transexuais.
Fim da transcrição.
Zé Ribeiro.
Asilos, abusos sexuais, trans-sexuais, prostitutos, pedófilos, lenocídio. São palavras que teimam em andar juntas.
Esperemos se o 2º capítulo do Casa-Pia não seja "As Oficinas de ...".
"Os Miseráveis" deveriam ter uma segunda edição melhorada!
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