29.1.06

Casamento II

Em simultâneo com a iniciativa referida no último post, é promovida uma PETIÇÃO PELA IGUALDADE NO ACESSO AO CASAMENTO CIVIL - ver aqui:

Ainda tem dúvidas sobre o carácter discriminatório desta violação da Constituição?

Em Portugal, o Artigo 36º da Constituição refere que "Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade." Mais: A Constituição da República Portuguesa proíbe explicitamente, desde 2004, a discriminação com base na orientação sexual (Artigo 13º). No entanto, o casamento civil continua a existir exclusivamente para casais constituídos por pessoas de sexos diferentes, numa clara violação da Constituição – que é a nossa Lei Fundamental. Isso significa que há muitos direitos associados ao casamento civil aos quais gays e lésbicas não têm acesso: do registo às heranças, passando pelos regimes de propriedade até aos inúmeros aspectos da vida quotidiana em que o estado civil é relevante.

Os deveres fundamentais do casamento civil estão claros na lei portuguesa: assistência (alimentos e contribuição para os encargos da vida familiar), fidelidade, respeito, cooperação, coabitação. No entanto, embora muitos casais de gays e de lésbicas já cumpram estes deveres, há vários exemplos do conjunto de direitos e deveres que diferenciam o casamento civil da união de facto:

Registo — não existe a possibilidade de registo da União de Facto e a lei não especifica os mecanismos pelos quais se faz prova de viver em união de facto;
Heranças — as pessoas que vivem em união de facto não são herdeiras uma da outra; cada uma pode fazer testamento a favor da outra, mas esse testamento apenas permitirá especificar o destino de parte do património (não havendo cônjuge, existe uma quota indisponível que se destina necessariamente a descendentes e ascendentes);
Adopção — o direito à adopção continua consignado apenas para as uniões de facto entre pessoas de sexo diferente;
Dívidas — são da responsabilidade exclusiva da pessoa que as contrair, mesmo se contraídas em benefício do casal, pois não existe património comum;
Direito ao nome — não há possibilidade de escolha da adopção de um apelido d@unid@de facto;
Regime patrimonial — ao contrário do casamento civil, a união de facto não permite a escolha de um regime de comunhão de bens ou comunhão de adquiridos.

Um casal heterossexual pode, considerando os conjuntos de direitos e deveres inerentes, optar pelo casamento civil ou pela união de facto — duas figuras jurídicas que têm, como se viu, diferentes implicações embora sejam baseadas num mesmo modelo de conjugalidade.

Um casal de gays ou de lésbicas tem apenas acesso à união de facto. Esta discriminação é real e afecta as vidas de muitos casais de gays ou de lésbicas.
É por isso que, a par dos E.U.A. e do Canadá, vários países da Europa têm vindo a alargar o casamento civil a casais constituídos por pessoas do mesmo sexo. A Bélgica veio juntar-se à Holanda, seguindo-se agora a Espanha.

Também em Portugal, o facto de se atribuir o mesmo reconhecimento legal a casais de pessoas do mesmo sexo não terá qualquer implicação sobre a liberdade de outr@s. Casais heterossexuais continuarão a ter exactamente a mesma liberdade de escolha. Nesta questão, liberdade e igualdade são, afinal, perfeitamente compatíveis.
No entanto, há vozes discordantes em relação ao reconhecimento dos casais de pessoas do mesmo sexo:
• Fala-se na impossibilidade de ter filhos em conjunto, quando nem o casamento civil pressupõe a reprodução nem a reprodução pressupõe o casamento (o casamento civil é obviamente possível para pessoas estéreis ou para pessoas para além da idade reprodutiva).
• Mistura-se casamento civil e adopção, quando a adopção é uma outra questão regulada, aliás, por uma lei específica.
• Na falta de argumentos racionais, tenta-se ainda uma "táctica do susto" falando nas ameaças da poligamia e do incesto, quando não há qualquer reivindicação social nesse sentido e quando, sobretudo, não existe qualquer relação lógica entre essas questões e o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo.
Fala-se portanto de cor, tentando de todas as formas dissimular a questão essencial: essas vozes reproduzem apenas um preconceito associado ao fundamentalismo religioso, vindo de pessoas que lidam mal com a igualdade e precisam de continuar a ver gays e lésbicas como cidadãos de segunda. Curiosamente, são também essas pessoas que, em geral, desvalorizam completamente o casamento civil face ao religioso, perdendo toda a legitimidade para se intitularem "protectores" do casamento civil.

O fim da exclusão dos casais de gays ou de lésbicas no acesso ao casamento civil promoverá simultaneamente a liberdade e a igualdade. Qualquer objecção a esta medida terá por isso uma única fonte: a homofobia. Enquanto o casamento civil não for alargado aos casais de pessoas do mesmo sexo, é o Estado que endossa e glorifica na lei essa mesma homofobia e é o próprio Estado que classifica as nossas relações de indignas e é o próprio Estado que nos insulta.

Assim, é fundamental e urgente que o Governo português compreenda que o casamento não pode ser um privilégio de casais heterossexuais e tome medidas concretas no sentido de garantir que casais de gays ou de lésbicas, que se amam e que se comprometeram a partilhar de forma plena as suas vidas, possam ver esse amor e esse compromisso igualmente reconhecidos e valorizados pela sociedade que integram.

4 comentários:

Mariana disse...

Cheguei aqui através de uma referência do Fantástico Melga e transcrevo então o comentário que já lá deixei sobre o assunto:
Quando, há pouco tempo, na cadeira de Direito Constitucional, falámos de direitos fundamentais e referimos o direito de todos a contraír casamento, mencionámos que havia alguns condicionamentos a esse mesmo artigo, pois quando se fala em todos não se incluí, por exemplo, os menores de idade. Sendo assim, fiquei para o fim e, quando a aula acabou, fui perguntar à professora se o facto de os homossexuais não poderem contraír casamento, também era um condicionamento ao tal artigo. Não é, pelo simples facto de se entender por casamento a união entre pessoas de sexos diferentes. Entre homossexuais poder-se-ia chamar união ou outra coisa qualquer, mas por casamento já se pressupõe que se está a falar de algo entre pessoas não do mesmo sexo. Foi esta a explicação da professora e, de facto, uns dias mais tarde, em Introdução ao Direito, como exemplo de uma definição legal (já não me lembro do artigo), vimos que está plasmada no Código Civil a definição de casamento e que se explicita que este só se dá perante pessoas de sexos diferentes. Acho que assim se rebate a ideia de que não se esá a violar lei nenhuma ao impedir que pessoas do mesmo sexo queiram casar e gozar dos direitos assim subsequentes (o que não significa que eu concorde).

/me disse...

Cara Mariana, gostei muito de ler a tua mensagem.

Não entendo nada de Direito, mas dá-me a impressão que não se trata de uma ciência exacta. De facto, a mesma lei pode ser interpretada de modos diferentes.

Mas, mesmo que não haja uma discriminação na lei(como argumentaste com clareza), penso que há uma discriminação de facto, na prática. E por isso mesmo, iniciativas como estas são úteis, para levar a uma discussão destas questões.

Repito que não entendo de direito, e por isso mesmo me atrevo a perguntar: as definições não estão também abrangidas pela Constituição? Pode-se argumentar que a definição de casamento é discriminatória?

Mariana disse...

Concordo que o direito não é uma ciência exacta e que, muitas vezes, cabe aos juristas interpretarem-no conforme achem mais correcto. Mas, neste caso, o que está plasmado no artigo não deixa margem para dúvidas, pois diz-se que casamento é a união entre pessoas de sexos diferentes. Sendo assim, mesmo que um jurista seja contra, não lhe resta margem de manobra na aplicação da lei.
Quando falámos disto na tal aula de Introdução ao Direito, o professor disse (e bem, na minha opinião) que o direito reflecte os valores da sociedade a que pertence. Sendo assim, o direito português sentiu necessidade de plasmar no seu Código Civil a definição de casamento, coisa que já não acontece nos códigos de outros países. O nosso actual Código Civil data de 1967 e, suponho eu (também ainda não percebo muito de direito, estou só no primeiro ano eheh), será da mesma data o referido artigo. Pode-se dizer que é um código moralista e conservador, em certos aspectos, o que poderá ser correcto atendendo á época em que foi elaborado. Daí explicar-se que tal definição lá apareça.
Sendo assim, não há de facto bases para quem argumenta que a proibição do casamento entre homossexuais é ilegal, pois isso não é. Pode-se é argumentar que a lei é injusta e deveria ser alterada. E, quanto a mim, isso não passa por uma alteração à Constituição, mas sim pela eliminação dessa definição do nosso Código Civil, passando casamento a abranjer a união entre duas pessoas (independentemente do sexo que possuam). Portanto, sim, pode-se argumentar que a definição de casamento é discriminatória.
Outra hipótese é conceder legislação civil e constitucional ás uniões de facto, tornando-as possíveis e com os mesmos benefícios e obrigações de um casamento comum (para os mais conservadores que não queiram ver o significado do termo "deturpado"), como já se fez noutros países.

Anónimo disse...

Olha eu também não sou de direito, mas não percebo porque é que não se há-de chamar da mesma maneira. Encontram todos os meios para tapar os olhos à realidade. Espero que consigam o que reinvindicam, em nome do princípio "tratamento igual para todos os seres humanos"!