9.1.06

Anti-clímax

O terminal distingue-se dos demais pelos passageiros sentados frente ao mesmo. É que é assim mesmo, a um português vê-se-lhe a pinta a milhas. Engravatado ou de unhas sujas, nada disfarça a sua nacionalidade. Em todos o mesmo ar de desalento, o mesmo enfado de partilhar o avião com outros portugueses, a mesma ânsia profunda de chegar à Pátria onde tudo funciona infinitamente pior mas onde nos sentimos finalmente bem. Repete-se a mistura squizofrénica do costume. Ao queixume "esta TAP é uma porcaria, vê-se logo que é portuguesa, atrasa sempre, o avião" junta-se o orgulho nacional "estes gajos não sabem o que é comida, em Portugal é que é". Todos iguais nos olhamos como se fôssemos diferentes, sendo esse o traço definitivo que nos une.

O avião está efectivamente atrasado, mas não tanto como o que vai para Copenhaga, e pelo menos não foi cancelado como o de Moscovo. As hospedeiras loiras distribuem sorrisos, excepto a única que não pintou o cabelo, que parece estar naquela altura do mês. Tem o seu direito, suponho, e também por regra só há uma destas por avião da TAP. Pergunto-me se as contratam a contar com isso. É que essas coisas dos ciclos não são certinhas como relógios, segundo penso perceber. Se forem a contratar hospedeiras de modo a terem no máximo apenas uma nesse estado por avião, tendo em atenção períodos de férias e possíveis baixas, não é fácil. Ainda para mais sabendo que estando várias mulheres juntas, os tais dias do mês têm tendência a sincronizar-se. É preciso muito boa gestão.

A criança começou a chorar, que lhe doem os ouvidos. Sim, há sempre uma criança à qual lhe doem os ouvidos. Por acaso esta até é meia sossegada, e os pais lá tentam dar um jeitinho "só mais um gole, vá, agora tapa o nariz e sopra, queres massagem no ouvido?". A pobre criança até nem faz muita birra e logo se vai distraindo com os desenhos animados que passa na televisão. Pior é o par de "amigos" que vai à minha frente, num constante puxa-prá-frente, puxa-pra-trás a cadeira, quase me derrubando a comida do pseudo-almoço (desta vez esqueceram-se de usar o eufemismo da "refeição leve"). Eu tenho 55 anos, diz ele, andei na tropa e nunca tive medo de ninguém. Quer alho para aqui, quer alho para acolá, e o avião todo tem de ouvir disto. Quando sairmos do avião - diz o outro com voz embaraçada pela bebida - nós depois lá fora falamos. Alho, alho, alho, 55 anos, mais alho, a guerra, alho, e ele não tem medo de ninguém. E eu, feito palhaço, não tive a coragem de os mandar calar. Da próxima vez que apanhar destes caramelos até peço à hospedeira mal-disposta para os mandar porta fora, se for preciso. Talvez a despressurização da cabine ajude com os problemas de ouvidos das crianças.

O inevitável "isto só em Portugal" ouve-se se não aquando da entrada no autocarro, no momento em que ficamos à espera das malas. Apetece-me dizer que se querem melhor, paguem eles, mas lembro-me intenção anunciada de taxar os passageiros da Portela para ajudar a pagar a OTA e calo-me. Pagar pagamos todos, mais do que a triplicar, e os preços não são para baixar, que os utentes da 25 de Abril ainda devem estar a pagar a Vasco da Gama. Junto-me ao coro dos telemóveis (é único o "pi-pi" das mensagens ao aterrar em Lisboa) e telefono a todos os meus amigos, feliz de voltar à terra-mãe. O alívio de estar no sítio que é meu sobrepõe-se a todos os cansaços da viagem.

Chega a mala. Procuro uma aberta entre os que estão especados em frente à passadeira rolante. Um rapaz tira a mala por mim e agradeço com um sorriso, com a consciência de que agora sim, estou em Portugal. Não tenho nada a declarar e também ninguém se importa, porque levam invariavelmente a pessoa antes de mim para a sala onde inspeccionam as malas. Saio da porta do aeroporto para a zona de espera e vejo um mar de gente... É impossível resistir a esboçar um sorriso. Dá-me a mesma vontade de sempre: acenar a toda a gente como se estivessem à minha espera, fazer um V de vitória e agradecer os aplausos, mas o sentido do ridículo ainda me vai impedindo - não por muito tempo mais, que um dia lá há-de ser.

Ao meu lado, um senhor de 30 anos. Tinha reparado já nele. Ar ansioso, como quem quer chegar quanto antes. Abre-se-lhe a boca de alegria, corre para a esposa e para os filhos. Vai abraçá-los... FLASH! Fotografia! "Espera, espera, volta lá atrás e repete lá isso que não ficou na fotografia". Não ficou nem vai ficar, aliás tu impediste-o de acontecer, ó palerma. Odeio estes criadores de anti-clímax, não sabem que o fotógrafo deve capturar, e não (re)criar, a situação? Acabam com toda a espontaneidade da vida.

Quanto a mim, encontro-me com a minha família. E ninguém estraga o momento com uma fotografia.

2 comentários:

Anónimo disse...

jeje! Adorei a frase "Todos iguais nos olhamos como se fôssemos diferentes, sendo esse o traço definitivo que nos une." É isso mesmo.
Revejo-me em muito do que contas, a sensação de encontrar portugueses, o regressar a Portugal depois de muito tempo... só não partilho a ilusão (no sentido espanhol do termo) que tu sentes ao regressar, o conforto que a ti te dá esse País... Eu não penso regressar definitivamente... :(

Enoch

/me disse...

Compreendo. Já agora, que falta para o País te dar esse conforto?