27.4.06

Essências

Creio que tenho uma visão feminina do sexo. O acto sexual - vou-me escusar a definir as fronteiras do mesmo - é-me relativamente indiferente. Ou melhor, o aspecto físico da coisa é bom e é importante, mas é o erotismo - que tem de ser construído - que determina o prazer que poderei ou não ter. Não nego o poder do instinto animal, nem o acho positivo ou negativo, simplesmente é. Só que, no degrau acima da escala do desenvolvimento, a forma como percepcionamos os prazeres dos sentidos está muito dependente de outros factores. Aqui tomo como visão masculina do sexo uma apetência para o mesmo pelo mesmo, pelo prazer físico, e a visão feminina como a necessidade de contextualização do mesmo. Aqui as palavras advêm de uma generalização simplista, claro.

O papel do erotismo, que tem de ser construído, é para mim determinante. Implica, por exemplo, que eu nunca poderia trair sexualmente ninguém. Para o fazer, precisava antes de construir uma relação erótica com uma outra pessoa, mas para mim o erotismo alimenta-se da exclusividade, entre outras coisas. Esta é-lhe indispensável. O erotismo, enquanto construção mental, está sujeita às condicionantes, crenças e valores de cada pessoa. Por isso, pela minha educação, por aquilo em que acredito, o erotismo - ou o tipo de erotismo que poderá envolver sexo - tem de surgir num contexto de compromisso. E aí está porque nunca poderia trair sexualmente alguém. Nem tenho mérito nenhum nisso. Simplesmente, o factor biológico é condicionado - não reprimido! - pela educação.

Na realidade, para o bem e para o mal, em quase todas as áreas da minha vida sou assim - mastigo muito com a inteligência os sentimentos e instintos -, o que acaba por ser um pouco confuso. É mais fácil de entender uma pessoa que simplesmente sente e segue os seus instintos. Mas nisso, cada um é como cada qual e usa as armas que tem. Se não podemos contrariar a Biologia, pois cada um é como é, também não podemos deixar de ser fiéis a nós mesmos. Podemos e devemos reeducar-nos para o melhor, mas aquilo em que acreditamos deve ser respeitado por nós mesmos. É para isso, afinal, que serve a liberdade. A questão está em nos aceitarmos a nós mesmos por aquilo que somos e em construirmos a nossa verdade. E esse, é um desafio enorme.

Não menos difícil é perceber que os outros têm a sua própria verdade e condicionantes. Falando por mim, projecto-me não raras vezes nos outros e percebo-os apenas do meu ponto de vista. Mas é assim mesmo que somos. Apenas podemos percepcionar o outro partindo de nós mesmos, e se podemos fazer algum esforço de flexibilidade, temos uma necessidade imperiosa de partir de bases seguras. Estas poderão eventualmente ser revistas, é claro, mas é fundamental tê-las. É um processo de aproximações sucessivas. Claro que aqui, o mais fácil é ser demasiado rígido ou demasiado flexível. O equilíbrio é difícil de atingir.

Tudo isso me leva a pensar nos limites das amizades, e no erotismo - ou falta do mesmo - nelas. Como disse, para mim o erotismo alimenta-se entre outras coisas da exclusividade. Mas seria ingénuo pensar que deixa de existir tensão sexual, ou melhor dito, questões sexuais (no sentido lato), nas amizades. Parece-me é que não se constrói erotismo nas mesmas, ou talvez nalgumas se construa algum erotismo, mas de tipo diferente. E é este o mais perigoso, por poder ser dúbio.

Há espaço para o erotismo nas amizades? Que tipo de erotismo? Até onde, quais são os limites?

Não me parece que estas sejam perguntas de resposta fácil e taxativa. O respeito pela personalidade de cada qual é obviamente basilar, bem como uma negociação constante, e o ter a certeza de que ambos jogam o mesmo jogo e não há enganos. Que nisso, tanto para o sexo (para os que o "praticam" nessas circunstâncias) como numa troca de elogios, é fundamental perceber se as pessoas se estão a dar ou a usar.

Finalmente, tenho reparado que muitas pessoas usam - abusam? - do erotismo para construir amizades. Será uma forma de falta de auto-estima? Uma ferramenta, apenas, como qualquer outra?

9 comentários:

BLUESMILE disse...

Não me parece que tenhas uma visão feminina do sexo. Isso parece-me um cliché.
A ideia de que o erotismo é essencialmente feminino e o sexo puro e duro uma cracterística da sexualidade masculina é uma construção redutora da sexualidade humana. Em boa verdade, homens e mulheres vivem ao amor com estas marcas de tensão e ambiguidade e cada um de nós faz uma construção epssoal da sua história morosa.

Quanto á amizade erótica... é quase sempre uma armadilha - esvai-se a amizade e esgota-se o erotismo.. Mas pode ser de uma intensa beleza, enquanto dura... (como a "eternidade do amor"...)

Mikael disse...

Oh pá tu sabes que não gosto de posts longos, o que te vale é que o tema é interessante. Ou melhor, temas, porque acho que abordas vários temas.

Eu encaro a sexualidade e o erotismo de modo diferente. Utilizando as tuas palavras tenho uma visão mais masculina, o que no entanto não me traz nem um passo mais próximo da traição do que tu. Eu dou muito valor à sexualidade, acho-a imensamente importante numa relação e não conheço o conceito de "demasiado sexo". (sim, sim, sou um tarado sexual :P). No entanto, sei que sou incapaz de ter uma relação sexual com alguém em quem eu não confie totalmente, que tenha um lugar muito especial no meu coração, que basicamente namore comigo. Por outras palavras, acharia perfeitamente normal ter sexo no primeiro dia de namoro, porque sei que esse namoro era fruto de um conhecimento aprofundado da pessoa.
Talvez isso vá de encontro ao conceito de erotismo que apresentas, mas acho que se distingue em alguns pontos que para mim são essenciais.

Basicamente distingo duas fases (para comigo mesmo), a fase do racional em que também trago à luz do mais puro pensamento lógico tudo aquilo que sinto e todos os sinais que vejo projectados pelas outras pessoas. Esta é a fase em que conheço a pessoa. Na fase seguinte, presumindo que ela existe (o que é raro), abandono um pouco a racionalidade, porque para mim há muitas coisas que ao serem trazidas à luz da racionalidade perdem o seu encanto. (obviamente, contraditório como sou, já troquei algumas vezes os passos a estas minhas "regras", agindo algumas vezes de modo mais impulsivo e posteriormente racionalizando sentimentos...)

Outro tema, recorrente, que abordas são os limites da amizade. Certamente existem várias definições, ou não existissem tantos tipos de amizade. A amizade colorida, a amizade monocromática (por oposição), a amizade platónica, a amizade sexual. a Amizade e a amizadezinha. Por isso, os limites têm que ser impostos pelos próprios amigos. O que serve para uma amizade pode não servir para outras. E ainda bem! Assim, acho que devias definir tu esses limites em conjunto com o amigo ou amiga, porque só assim terá sentido. Nada do que as pessoas te aqui responderão será absolutamente viável de ser transposto para as tuas amizades, porque elas simplesmente são tuas.
Bem vou-me deixar de filosofar (filosofia de ponta perceba-se :P) para que o meu comentário não fique tão longo como o teu post.

Ai, espera, esqueci-me de comentar uma coisa. Quanto ao uso do erotismo para construir uma amizade. Correndo o risco das generalizações digo que, grosso modo, quando a construção de uma amizade se baseia principalmente no erotismo é porque há pouco mais para oferecer. Vejo o erotismo como uma consequência (possível e não taxativa) da amizade, mas não o oposto. Excluindo obviamente casos de ex-namorados(as). Há tantas características interessantes nas pessoas (ok, algumas) que não percebo o uso (em excesso) do erotismo para criar uma amizade. Pelo menos não uma Amizade. (não sei se percebes a diferença). Claro que se falarmos noutros tipos de amizade, talvez seja normal. Para uma amizade colorida ou sexual presumo que o uso do erotismo seja obrigatório.
Tudo se torna subjectivo porque cada um é que sabe o que busca, quais os limites que quer impor e que amizade quer estabelecer. Sim, nós somos mesmo estranhos e complexos. :)

Desculpa o meu "testamento" mas o post merecia.
Abraço!

/me disse...

BLUESMILE, sim, é um cliché, mas às vezes as dicotomias simplistas ajudam ao raciocínio. :)

Concordo que a amizade erótica é perigosa. Mas há erotismos muito leves, que acho que até são úteis. Acho que as amizades não têm de ser completamente deserotizadas. Eu consigo ver se um amigo/uma amiga está ou não arranjado de um modo que o/a favoreça. E sei dar o piropo. Isso não é também erotismo?

Mikael, também não gosto muito de textos demasiado longos, confesso! :p
Eu não desvalorizo em nada a sexualidade, e concordo com o que disseste sobre ela. Aliás, concordo com tudo o que disseste sobre erotismo e sexualidade.

Quanto ao erotismo ser uma consequência (possível e não taxativa) da amizade, acho que colocaste bem a questão. :)

desenho. disse...

Bem, tal como disseste, cada um joga com as armas que tem. Pode ñ ser por mal, eu farto-me de brincar c a minha melhor amiga, se for preciso até lhe dou uma palmada no rabo :x (mas ela retríbui, se é q ñ foi ela mm a começar :P ). No entt ñ vejo mal nenhum. Se soubermos até onde podemos ir então td ñ passade uma brincadeira entre amigos, e o facto de podermos abordar a questão sexual deste maneira tem haver c a intimidade q há entre ambos. É preciso é perceber que ñ se contrói uma amizade c base no "erotismo" mas sim q este pode advir c o tempo e à medida q o grau de intimidade entre as pessoas envolvidas for crescendo. :)

teresa.com disse...

bolas, muito bem dito!
mas não assumas que é ser-se feminino. As mulheres já não são o que eram ou talvez já não disfarçem o que sempre foram... a verdade é que tenho sido surpreendida tantas vezes por "elas" que perdi a confiança na guerra dos sexos. Sexo é bom, sim senhor, mas concordo que o erotismo é ainda melhor! Mas acho que não é falta de auto-estima... quem sofre disso não sabe o que fazer com o resto de si senão talvez dá-lo sem qualquer valor e aí, quando não se sabe o que se dá, porque se dá ou a quem se dá, lá se foi o erotismo da coisa pelo cano abaixo...
acho eu...

Anónimo disse...

Hummm ... este é um post que me é difícil comentar ... precisamente porque o meu ponto de vista não é o teu.

Vejamos: Eu conheço perfeitamente o sexo-só-sexo, SSS, e o sexo-com-amor-por-cima, SAC. Não é o erotismo que marca a diferença: ele está presente nos dois. É a partilha de algo mais que o corpo - a própria vida - e a preocupação pelo outro como se fôssemos nós proprios.

Quando era novinho, < 20, o SSS era o único que estava no horizonte; e era um alvoroço de cada vez que a perspectiva se concretizava. Depois, fui-me apercebendo que o SSS era apenas o princípio da história e que havia coisas muito melhores para construir. Aos 22, já tinha descoberto que passar uma tarde nos braços da pessoa amada ( aos 22, homem ) apenas falando da vida, sem sexo, não era menos gratificante que la baise la pus réussie.

No meu caso, não tem nada a ver com construção de erotismo ( a própria expressão "construção do erotismo" arrepia-me - nunca me lembraria de "construir" tal coisa ): é somente uma questão de maturidade. Só um puto troca um estufado de repolgas, colhidas no bosque, num tronco velho de castanheiro ( após muitos dias a cocar o tronco, à espera que os cogumelos eclodissem ), e cozinhadas amorosamente, por um hamburguer da MacDonld's - ou por uma sandes de frango na Subway, tch, tch, tch, ...

Também a questão da traição sexual é por mim posta de maneira diferente. Claro que sou absolutamente capaz de. Mas nunca o fiz ( o que, acredita-me, deve fazer de mim caso único na minha geração; quando o álcool destrava as línguas dos amigos fica-se a saber tanta coisa ... ). Não por questões morais, não de certo por defeito de "construção de erotismo" ( novo arrepio ), mas simplesmente porque não quero magoar o outro e porque, comodista que sou, quero continuar a papar descansado o meu estufado de repolgas.

Mastigas muito sentimentos e emoções com inteligência ... Sim, claro. Eu também - mas não a este ponto. Há uma razão para isto. Tu recebeste uma educação católica tradicional, e estavas destinado a ser um esteio da familia, da sociedade decente, dos bons costumes, do altar ( e só não ponho do trono porque estamos em República ). Mas Deus - que escreve direito por linhas tortas - teve a ideia genial de te fazer gay; é sempre uma bênção, mas no teu caso foi-o a dobrar. Porém, a tua educação e a gayness são contraditórias ( antagónicas mesmo ), e, homem metódico e decidido que és, arregaçaste as mangas e dedicaste-te à construção de um compromisso. Faze-lo com determinação e coragem, que são de admirar, e que - não tenho qualquer problema em dizê-lo ( porque havia de ter? ) - despertam sentimentos de ternura. Mas há um aroma excessivo a construção intelectual ...

A amizade e o erotismo ... Não é assunto em que pense muito, mas vamos lá.

"Dar", "usar" em matéria de sexo e de elogios no quadro de uma amizade ...

Já "dei" sexo no quadro de uma amizade; não é frequente, mas já aconteceu; não levanta em mim qualquer problema. Nunca "usei", julgo.

Passando aos elogios, a alternativa é disparatadamente redutora. Por exemplo, eu nunca te vi, mas pelas maravilhas do mundo moderno, conheço até certo ponto o que se passa na tua cabecinha e não tenho qualquer problema em dizer que é uma cabecinha muito, muito interessante; não te estou a dar elogio algum, muito menos a usar-te ( como poderia? ); estou apenas a exprimir uma admiração. Outro exemplo: outro dia, num jantar com o reitor, conheci uma colega cinquentinha, boulotte, professora de Teatro, que se revelou uma das mulheres mais interessantes que já conheci; bebia as palavras dela, os gestos dela, as atitudes dela, como um tuaregue bebe água; no fim, disse-lho. Não dei, não tenciono receber ( não me despertou a concupiscência ); simplesmente, admirei e disse.

Admirar é uma função humana. Há homens pequeninos, que julgam ficar mais pequeninos quando expressam admiração. Nunca passei por tais dificuldades.

/meinho: Estuda muito até sexta; desliga a máquina pensante no fim de semana ( o que incui a construção do tal "compromisso" ) e diverte-te. Mesmo aí, mais próximo da calote polar, deve ser Primavera, gaita! Vai ver as flores, os passarinhos, as míúdas e os miúdos nerlandeses, comer mexilhão com batatas fritas ... todas esssas coisas.

Tchuik,
ZR.

dcg disse...

Para te ser sincero, este meu comment não vai ter piada nenhuma porque concordo em quase tudo! O facto de se rotular a tua visão do sexo como feminina pode ter a sua lógica. É certo que é uma generalização, com uma grande dose de erro associada, é óbvio. Mas a verdade é que é bastante mais comum essa visão fazer parte do mundo feminino do que do masculino. No entanto deixa-me dizer-te que cada vez mais me convenço que a distinção do género começa a deixar de fazer sentido, se formos muito para além das evidências físicas. Somos tão complexos que qualquer definição ou catalogação peca por defeito.
Gostei muito da análise do ZR quanto à coordenação da tua orientação sexual com a educação que tiveste e a posição na sociedade para que supostamente foste desejado. Revi-me nas palavras e se calhar foi por isso que gostei.
Erotismo na amizade. Ora para mim há coisas que não se deviam misturar. E disse deviam, não devem, repara.
Abraço grande!

BLUESMILE disse...

A amizade erótica implica sempre um certo grau de envolvimento sexuado. Ou seja, podemos ter imensas amizades sem a menor conotação erótica. Quando o erotismo existe, é porque se estabelece esse laço indefinido, essa pequena cintilação de desejo ( a química) entre duas pessoas , é algo de fascinante ( veja-se o relato do fascínio erótico relatado por ZR por uma professora de teatro). A amizade erótica Pode nunca desembocar no toque ou no beijo ou em algo mais, mas é uma fantasia que está sempre presente, como um enleio. Se for muito intensa, a amizade amorosa desemboca no inevitávelmente nu puro erotismo.
E depois, não sabemos.
Podemos descobrir um amor ou perder um amigo...
Porque, ao contrário do que escreveu aqui alguém... o erotismo é mesmo construção ( invenção, devir..)

Beijinhos

Paulo Afonso disse...

Situo-me num ponto radicalmente distante do teu... basta visitares o meu blog, e procurar o post "sexo e natureza"; para o perceberes! Não vou demorar muito tempo com exposições do que penso sobre o assunto!
No entanto, gostava de deixar algumas "provocações":

"O equilíbrio é difícil de atingir." E o caos e a desordem, onde entram?!... Na ordem do não-desejável? Do mau?...

Depois, se eu tivesse de carimbar este texto, seria com a palavra: auto-controle! Será que temos mesmo de auto-controlarmo-nos? Está na ordem natural, esse controle? É saudável esse controle?

Não digo que vivamos como animais, mas respeitemos o nosso lado animal, e a "força" distinta com que se manifesta em cada um.